João Vicente Duque Estrada

A falta de coragem
(de João Vicente)

(Pedro, morador do 202, chega da rua com Julia e familiares.
Julia é mulher de Pedro, mas esse não é o problema aqui. A questão é que, desde que Julia veio morar no Rio, Pedro anda escutando da mulher a vontade em trazer a parentada pruma visita. Todo mundo de Goiânia. No verão, é óbvio.
Seu Joselio, o porteiro, toca a campainha. Pedro atende.)

SEU JOSELIO: Oi, seu Pedro, como vai o senhor? Olha, deixa eu te dizer, vai começar uma obra aqui no prédio, te avisaram não? O prédio vai ficar sem água, duas semanas.
(Pedro olha para seu Josélio com uma cara animada.)
PEDRO: É sério isso?!
SEU JOSELIO: É, parece que é coisa da coluna de água, sabe? Tá vazando. O sindico já prorrogou a obra um tempão por causa do problema da água, mas disse que não pode mais atrasar. Aí...
PEDRO (rindo): Seu Josélio, não me avisaram!
SEU JOSELIO: Pois é, seu Pedro. Por isso eu já vim avisar logo.
PEDRO (gargalhando): O senhor está certo! Tem que avisar mesmo!
(A mulher tem 1,83 metros de altura. Uma deusa dessas da europa, da mitologia. Que sempre foi uma fonte de atração para seu Josélio. A deusa chega desconfiada.)
JULIA: O que está acontecendo?!
PEDRO (tentando fingir o desapontamento): Vai ficar sem água, amor. A parentada vai ter que ficar num hotel.
JULIA: Como assim, seu Josélio? Vamos ficar sem água??!
SEU JOSELIO (hipnótico): Parece que é coisa da coluna de água, sabe? O sindico já prorrogou a obra um tempão por causa do problema da água...
JULIA: Isso é um absurdo! Seu Josélio, eu acabei de chegar com meus pais, eles vieram passar uma temporada comigo. Há tempos que eu não os vejo. Você tem que dar um jeito, seu Josélio. Pedro, faz alguma coisa!
PEDRO: Amor, é regra do condomínio.
(Seu Josélio olha para a mulher de cima até embaixo e se dirige a ela.)
SEU JOSELIO: Dona Julia, pode deixar que eu vou dar um jeito!
PEDRO (não acreditando no que ouve): Vai dar um jeito como, seu Josélio?
SEU JOSELIO: Seu Pedro, pode deixar, eu posso fazer um remendo na coluna.
PEDRO: Mas que remendo, o sindico vai deixar um remendo na tubulação do edificio?
JULIA: Amor, esquece esse sindico maluco. Nao viu que ele fez isso de proposito, ele sabia que meus pais viriam no verao.
SEU JOSELIO: Olha, o remendo aguenta umas duas semanas. Aí, depois o rapaz da obra faz o serviço.
(Pedro e seu Josélio estão numa sala onde passam todos os tubos de água do prédio.)
SEU JOSELIO: Tá vendo aquele tubo lá? O senhor não sabe mas ele vai dar no tubo que tá estragado. Eu vou fechar a coluna toda na rua e conserto a falha no tubo, o problema é que vai ficar um tempo sem água, né?!
PEDRO: Tá... mas...
(Seu Josélio vai até a rua e volta.)
SEU JOSELIO: O senhor pega ali pra mim a ponta daquele tubo e puxa. Isso! Tá meio fraco, tá vendo?
PEDRO: Aham.
SEU JOSELIO: Agora, se tiver um jeito de entrar por esse tubo e eu conseguir alcançar o tubo lá em cima...
PEDRO: Tá maluco, seu Josélio. Como o senhor vai entrar por dentro desse tubo!?
SEU JOSELIO: Tô brincando, seu Pedro. Ô, o senhor também... O negócio é tentar puxar daqui mesmo... opa! Consegui! Pronto, aqui, segura! Agora, o senhor só tem que ir até lá na loja e comprar um tubo novo.
PEDRO (apreensivo): E quanto é um tubo desses, seu Josélio?!
SEU JOSELIO: Ah, seu Pedro, isso aí é caro! Um tubo desse aí tá pra quase uns três mil reais.
PEDRO (revoltado): Mas o que é isso?! Ai, meu Deus. E agora, o que que eu faço?!
SEU JOSELIO (tirando o suor do rosto): O senhor que sabe, seu Pedro, assim a familia fica tudo junta, não precisa se mudar, né?
PEDRO (agarrando o porteiro pelo pescoço): Seu Joselio, o senhor não vê que eu quero esse pessoal longe daqui, longe daqui!
(Pedro e Julia estão deitados na cama, vendo TV. O sobrinho dela tá no meio dos dois. Pedro toma coragem pra falar.)
PEDRO: Poxa, gastei mó grana hoje com o cano!
JULIA: Não, João! Eu tava vendo, me dá esse controle. Bota na novela de novo.

Fim.

Cena
(João Vicente)


Um casal, na cama. Estão vendo TV. Um barulho na porta.
- ihhh!
- o que foi?
- não ouviu?
- o que?
- o barulho!
- não...
- eu acho que é um ladrão!
- deve ser coisa do filme.
- não, não é. eu tenho certeza que ouvi um barulho vindo da porta.
- tem certeza?
- tenho!
- então tá, vamos supor que seja um ladrão. você ia querer que eu fosse lá, enfrentar ele?
- era o mínimo...
- ah, não vou não!
- por que?!
- estou vendo o filme!
- eu estou achando que você não tem coragem de ir lá enfrentar o ladrão!
- é claro que tenho, só estou esperando o filme acabar.
- rafael rodrigo, se você me ama, abra agora aquela porta!
- e a prova de que eu te amo é se eu abro uma porta?
- aquela porta!
- eu abro todo dia essa porta, ou seja, já provei por a mais b que eu te amo muito.
- falta abrir ela agora!
- meu deus, vocês nunca estão satisfeitas, sempre falta uma coisinha a ser feita.
- eu não espero que você faça mais nada, temos um ladrão dentro de casa e você não é homem o suficiente para ir lá.
- tá vendo, a gente se esforça pra manter a relação estável e um simples ladrãosinho rouba a nossa confiança.
- você está colocando a culpa no ladrão?
- voce está vendo mais alguém aqui além de nós três?
- o ladrão não tem nada a ver com isso!
- tem sim!
- o ladrão só deixou as coisas mais evidentes.
- além de tudo, um péssimo ladrão.
- e você um péssimo marido.
- não tá feliz? vai lá, pros braços do ladrão.
- ele deve estar armado.
- ah, então vocês vão se dar bem!
- estou vendo que você conhece bem o ladrão.
- muito bem!
- então por que não vai você pros braços dele?
- porque eu estou vendo o filme!
- já acabou o filme, rafael.
- então vamos dormir que amanhã eu tenho que levantar cedo, anda.
- e pensar que eu me casei com isso.


FIM



Coincidências
(de João Vicente Duque Estrada)


Artigas, morador do 401 no Solar Baronesa, esperava o elevador no hall do corredor quando Dorneles, morador do 404 e, portanto, vizinho de frente de Artigas, abriu a porta do apartamento, o que despertou a sua curiosidade. Ele viu, lá dentro da sala de Dorneles uma parede pintada com uma cor estupenda, uma cor, assim, diferente, que Artigas tinha em seus sonhos para pintar em sua parede, mas que não sabia dizer, ao certo, qual era. Era a cor da parede do Dorneles. Neste mesmo dia, ele desistiu de sair e voltou em casa com uma ansiedade tamanha, querendo falar pra todo mundo que achou a tinta que ele queria. A mulher falava ao telefone.
MARTHA
...Se a senhora vier no fim de semana aqui, não tem problema que o Artigas pega você de carro em casa... Ele pega sim! Você pega ela, não pega?! Não, ele pega sim. Não precisa vir de ônibus, não! Muito trânsito! Tá... Faz o suflê que as crianças adoram!
(olhando pro Artigas com desprezo)
O Artigas esqueceu de comprar farinha... É... Agora não dá tempo! Traz só o suflê que o resto eu tenho aqui... Tá bom, mãe! Deixa eu ir. Deix... O Artigas tá aqui empolvoroso! É... Fazer o que... Ele quer falar... Tá bom... Pode deixar, ele vai te pegar aí! Beijo! O que foi, homem de Deus?!
ARTIGAS
Eu encontrei!
MARTHA
Encontrou seu celular?
ARTIGAS
Não! Encontrei a tinta que eu queria colocar aqui na sala!
MARTHA
E qual é a tinta, Artigas?
ARTIGAS
Não sei! O Dorneles tem!
MARTHA
E desde quando o Dorneles é pintor?
ARTIGAS
Ele pintou a parede da sala dele justamente com a tinta que eu queria colocar aqui.
MARTHA
Mas que cor é essa, meu Deus?
ARTIGAS
Não sei te dizer, mas você vai ver!
MARTHA
Ver como, se o Dorneles não fala contigo desde aquele dia que pegou você roubando o jornal da porta do apartamento dele!?
ARTIGAS
Ele roubou o meu, eu roubei o dele!
MARTHA
Bom, de qualquer forma, como você vai saber qual é a cor?!
ARTIGAS
Não sei! Mas pode ficar tranquila que eu vou encontrar um jeito.
MARTHA
Você precisa é encontrar um jeito de pegar a mamãe na casa dela, porque os documentos do carro venceram. Se tiver lei seca, você vai fazer o que, Artigas?
Artigas sai pela porta em disparada, deixando a mulher falando sozinha no sofá. Na portaria, encontra seu Josélio, o porteiro, trocando umas palavras com Dorneles de passagem pra rua. Artigas finge que não está prestando atenção.
SEU JOSELIO
Seu Dorneles, soube da nova parede! Parabens!
DORNELES (orgulhoso)
Obrigado, seu Josélio! Aqui, seu Joselio, o contato dele. O senhor guarda isso com você, não deixa ninguem ver, tá?
SEU JOSELIO
Seu Dorneles, pode ficar tranquilo que eu tomo conta pro senhor.
DORNELES
Seu Joselio, isso é muito serio.
(notando a presença de Artigas)
Não quero que ninguém saiba disso. E nesse predio aqui, tá cheio de pilantras...
SEU JOSELIO
Pode ir lá, doutor!
Dorneles sai meio desconfiado. Seu Joselio acompanha Dorneles com olhar de um discípulo leal e fiel. Solta um suspiro e deixa o papel que Dorneles acabara de lhe dar em cima da mesa da portaria.
Artigas, numa manobra arriscada, estica o olho e consegue ver o nome e o telefone do pintor, sem dar nenhuma bandeira. Volta numa euforia pra casa. Pega o telefone e disca o número do papel.
ARTIGAS
Alô? Clovis?
CLOVIS
É ele!
ARTIGAS
Olá. Escuta, seu Clovis, eu queria muito que o senhor pintasse na minha casa.
CLOVIS
E qual a cor que o senhor quer?
ARTIGAS
É a mesma cor do Dorneles!
CLOVIS
O senhor não sabe identificar? é porque são tantos clientes...
ARTIGAS
O Dorneles é o meu vizinho! Sou aqui do Solar Baronesa!
CLOVIS
Tá bom. Eu vou aí, a gente conversa, você me mostra quem é o Dorneles... A gente dá um jeito!
Dois dias depois, Artigas e Clovis estão na sala de Artigas, analisando a parede já pintada com uma cor não exatamente igual a do Dorneles. Era uma cor vinda do vermelho.
ARTIGAS
Mas não tem nada a ver com a parede do Dorneles.
CLOVIS
Aí o senhor me permite, mas não está mais na minha alçada.
ARTIGAS
Como assim? O senhor não sabe que tinta usa nas paredes?
CLOVIS
Eu sei! Só não sei de que parede o senhor está falando!
ARTIGAS
A parede do Dorneles, daqui da frente.
CLOVIS
O senhor não quer ir lá perguntar?
ARTIGAS
Deixa, seu Correia!
CLOVIS
É Clóvis!
ARTIGAS
Seja o que for, pode ir!
Artigas, indo pra rua, arrumar um papel de parede que cobrisse aquela porcaria antes que sua mulher chegasse com a mãe pro almoço, parou na portaria e viu seu Josélio com o cabelo pintado da mesma cor que a sua parede.
ARTIGAS
Seu Josélio?
SEU JOSELIO
Pois não, seu Artigas!
ARTIGAS
Onde o senhor pintou esse cabelo?
SEU JOSELIO (meio constrangido)
Foi o seu Dorneles que me deu o contato.
ARTIGAS(nervoso)
De quem, ora?!
SEU JOSELIO
Clóvis, cabelereiro!
Fim.